quinta-feira, 31 de agosto de 2017

PATROCINADO PELA INSÔNIA XXIV

Foi uma noite misteriosa aquela. O relógio grande e branco, pendurado no canto do prédio da empresa, na esquina, mostrava 22h13min, quando ele desceu as escadarias da porta principal, e saiu, a pé, na direção de casa. Já estava um céu impressionantemente escuro que se tornou um breu após um estrondo. Ele pensou em atravessar a passarela, sobre o riacho, para alcançar o outro lado da avenida, mas desistiu. Se de dia, sentia tonturas na travessia especialmente quando alguém passava correndo ou de bicicleta fazendo a ponte oscilar, não seria naquela escuridão que ousaria atravessar, correndo o risco de cair nas águas fétidas. Por isso, seguiu costeando o riacho, andando na ciclovia.
     Enquanto caminhava, maldizia a empresa de distribuição pública de energia. Pensou melhor e proferiu imprecações contra os administradores - o prefeito e seus cupinchas - sempre interessados em precarizar as estatais para darem prejuízos, atrapalhar para conseguir maus atendimentos e assim justificarem uma possível venda à empresa privada, sabe-se lá em troca de que recompensas.
  Assim pensando e impressionado com a escuridão da noite que o fazia prestar extrema atenção aos seus passos. Pra piorar, logo naquele dia havia esquecido o celular em casa. Ele dobrou na primeira esquina e cruzou a ponte histórica sobre o arroio. Não havia viva alma na rua. Na outra quadra, divisou alguma luz promovida pelo gerador do hospital. Depois de passar a outra mão da via, já estava perto de casa, mas, a cada passo, sentia-se mais perdido com a impressão de que agora o breu era intenso. Sentia-se como se estivesse em uma gaveta fechada e revestida de algum tecido preto. Não enxergava literalmente um palmo diante do nariz. Achava que já estava diante do seu prédio, mas acabou se arranhando em arbustos e percebeu que estava perdido. Seu edifício, um dos poucos prédios baixos e, por isso mesmo antigos, estaria mais à frente ou já teria passado por ele. 
  Naquele escuro total, pensou nas dificuldades que um cego tem em uma eternidade sem luz. Por coincidência, ouviu passos rápidos atrás de si, acompanhados do batimento ritmado no chão. Um deficiente visual passou célere por ele. Vestia uma roupa totalmente preta, com um capuz, e uma bengala preta. Teve vontade de pedir ajuda ao cego, mas demorou para agir e não conseguiu porque, em segundos, não o viu mais. 
   Foi então que percebeu o que parecia ser um cachorro vindo em sua direção. Não teve tempo para se assustar porque o cão latiu para ele beijou suas mãos. Foi então que percebeu que era o Xerife. Só não entendeu como ele saiu do seu apartamento, mas agradeceu aos céus por ele ter feito isso. Seguindo o cão, conseguiu acessar a porta do prédio. A porta do apartamento estava aberta. No escuro, não percebeu nada fora do lugar. Talvez Xerife tenha espantado algum bandido que se aproveitara do blecaute geral. Depois de conferir se havia comida e água para o Xerife, foi para o quarto, tateou e percebeu que tudo estava em ordem, e dormiu. No dia seguinte, certamente entenderia o que aconteceu.

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