terça-feira, 9 de outubro de 2007

CHORAM MARIAS E CLARICES NO SOLO DO BRASIL

                                                    Video acrescentado em 12/7/2011

Afinal, quem é Maria e quem é Clarice?


Outro dia eu estava ouvindo uma música da inesquecível e insubstituível Elis Regina, quando parei para pensar na letra e me chamou a atenção o seguinte verso: "Choram marias e clarices, no solo do Brasil. Eu sabia quem era a Maria, mas fiquei curioso em descobrir quem era a Clarice.
Perguntei a uma série de pessoas das minhas relações, inclusive jornalistas, e ninguém respondeu de cara. Alguns achavam que tinha a ver com a escritora Clarice Lispector. Não tem.
Foi aí que decidi decodificar aqui a letra de O Bêbado e a Equilibrista, composta pelo carioca Aldir Blanc e pelo mineiro João Bosco e lançada em 1979 pela gaúcha Elis.
A música, criada no auge da ditadura, foi considerada como o hino da anistia. Vamos à letra:
"Caía a tarde feito um viaduto e um bêbado, trajando luto, me lembrou Carlitos." Como pode uma tarde cair como um viaduto? Pensei, pensei e me lembrei que um viaduto havia ca¡do no Rio lá por aquela época. Uma consulta ao Google me salvou. Em 20 de novembro de 1971, o Viaduto Paulo de Frontin, na Tijuca, caiu, causando a morte de 29 pessoas e ferimentos em outras 30. Havia denúncias de corrupção e desvios de verbas e, assim como outras grandes tragédias, ninguém foi responsabilizado. Mais pesquisas e entendi a frase no início da música. A tarde caía abruptamente como a queda do viaduto Paulo de Frontin. O sentido era observar metaforicamente a então situação do país, onde a mudança política ocorreu também de forma abrupta com o golpe militar. O bêbado trajava luto pelas mortes dos que lutavam contra a repressão e lembrava Carlitos, um personagem de Charles Chaplin que simbolizava a crítica de um marginalizado da sociedade ao capitalismo mundial. Chaplin morreu em 1977.
A lua, tal qual a dona de um bordel, pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel.
Nunca falei com Aldir Blanc nem pude constatar isso em livros e Internet, acho que, sem poder contestar abertamente a nova política antidemocrática estabelecida, a lua provavelmente se refere às autoridades que acreditavam estar em um país de paz e felicidade. Provavelmente faz menção velada a músicas ufanistas como "as praias do Brasil ensolaradas...eu te amo meu Brasil, eu te amo, e a outras camadas que apoiaram o golpe ou tiveram medo de provocar os militares.
Nuvens, feito um mata-borrão no céu chupavam manchas torturadas. Que sufoco! Louco, o bêbado de chapéu coco fazia irreverências mil, à noite do Brasil.
Uma referência quase clara à tortura no chamado per¡odo de chumbo. A irreverência do bêbado é uma contestação aos dias (e noites) vividos no Brasil naquele per¡odo de 1964 até a data da anistia, em 1979.
Meu Brasil, que sonha com a volta do irmão do Henfil e tanta gente que sumiu num rabo de foguete. Chora, a nossa pátria mãe gentil, choram marias e clarices, no solo do Brasil.
O irmão do Henfil é o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que estava exilado e que pouco antes de morrer de Aids aos 61 anos, (era hemof¡lico e contraiu sangue contaminado) , criou a Campanha Contra a Fome e a Miséria. Henfil era cartunista combatido da ditadura. Nessa época, ele tinha uma coluna na Isto É onde escrevia cartas para a mãe dele, justamente dona Maria. Na coluna, dava notícia aos correligionários e toques para os militares. Henfil morreu em 1985 aos 44 anos. Além da mãe do Henfil, a música homenageava as marias-mães brasileiras. Clarice era a mulher do jornalista Vladimir Herzog, que foi chamado, em 1975, pelo DOI-Codi para explicar ligação com o Partido Comunista Brasileiro, na época clandestino, e apareceu enforcado. Foi confirmado que ele foi morto durante sessão de tortura.
Eu sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente. A esperança dança na corda banda de sombrinha, e a cada passo dessa linha pode se machucar. Azar, a esperança equilibrista sabe que o show de todo o artista tem que continuar.
Essa parte não precisa explicar, claro. Era isso.
A seguir, o bêbado e a equilibrista, na voz da maravilhosa Elis Regina.

22 comentários:

  1. Grande aula de cultura, Plínio!
    Estava curiosa para ler essa explicação, achei muito interessante!

    Abraço!

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  2. nossa cara que legal gostei muito

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  3. Muito boa a explicação! Obrigado pela excelente informação.

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  4. Excelente análise! Gostaria, se possível,de acrescentar:


    Maria é a esposa do operário Manuel Fiel Filho morto sob tortura nos porões do DOI-CODI (SP) em janeiro de 1976

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  5. Quando eu pesquisei sobre a letra da música, eu também vi na Internet essa possibilidade de que a Maria tivesse a ver com a víúva do operário Manoel Fiel Filho. Ocorre que o nome da viúva dele não é Maria, é Teresa de Lourdes Martins Fiel. Como a Clarice é a viúva do jornalista Wladimir Werzog, assassinado pela repressão, algumas pessoas achavam que a Maria fosse a viúva de Manoel Fiel, também morto pelos militares na mesma época. Na verdade, Maria personificava, no nome da mãe do Henfil, uma homenagem à mulher brasileira, as marias que eram também as teresas como a viúva do Manoel Fiel Filho e tantas outras.
    Abraços.

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  6. Muito Obrigado!
    tava ouvindo a musica a descidi procurar exatamente que era clarice (pensava tbm que era C. lispector )
    E tu me explicou a musica toda de uma maneira perfeita!
    Obrigado de novo!

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  7. Plínio,

    Parabéns pela análise. Mas a grafia do nome do jornalista, que à época de seu assassinato era diretor de jornalismo da TV Cultura não seria Vladimir Herzog, como está na Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Herzog)?

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  8. Perfeita observação Craf07. Já arrumei no texto. Obrigado.

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  9. NOSSA CARA ADOREI ESSA AULA,não da pra comentar sobre a musica Ideologia do Cazuza não?
    1000Bjs

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  10. Que eu saiba Maria é a Marieta severo e clarice é a esposa do francis hime

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  11. Você está enganado, Anônimo ou Anônima do dia 7/7/2015. Marieta Severo é personagem de uma outra música. chamada Meu Caro Amigo, de autoria do então marido dela, Chico Buarque. A música fala também na mulher do Francis, e ela se chama Cecília. Francis Hime é o autor da melodia dos Meus Caro Amigo e também tem uma mensagem que se refere sub-repticiamente aos tempos da Ditadura Militar no Brasil. Mas você fez confusão com o Bêbado e a Equilibrista. Abrs

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  12. Maria podia ser também Maria Nakano, esposa do Betinho.

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  13. Obrigado por explicar essas dúvidas
    Me ajudou muito
    Abraços

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  14. Muito proveitosa essa aula cívica.

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  15. Muito boa a reflexão. Fiz exatamente o comentário desta música em um jornal da associação dos funcionários da UNESP e as reações foram surpreendentes - de um lado, elogios e, de outro, críticas por "mexer" com tal assunto.
    Bom, Clarice, refere-se à Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog, morto pela política repressiva no DOI-CODI em 25 de outubro de 1975.
    Mas, em janeiro de 1976, outra morte, também pela repressão: foi a de operário Manoel Fiel Filho.
    Então choram Marias - mulheres dos inúmeros operários ou mães dos inúmeros estudantes que lutaram; e choram Clarices.
    Parabéns pelos comentário lúcidos.
    José Guilherme Kock
    Araraquara - SP

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  16. Maria é a esposa do operário Manuel Fiel Filho morto sob tortura nos porões do DOI-CODI (SP) em janeiro de 1976

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  17. Não, João Guimarães, Maria não era a viúva do Manuel Fiel, como já expliquei nos comentários acima. O nome da mulher do Manuel é Teresa de Lurdes. Maria é a mãe do Henfil e do Betinho e personifica as mulheres brasileiras, as marias do
    Brasil.

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  18. Emocionado com a sua sensibilidade na descrição desta canção! Continue descortinando a verdade (muitas vezes dura) nos mais doces versos... Muitos jovens o agradecem por mim... Obrigado!

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  19. Muito legal.Procurava explicações de alguns pontos e fiquei feliz em encontrar essa página.

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  20. Obrigado pelo retorno, S.Tradução, Valmir e Linda. Abrs,

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  21. Adorei, usei como referência no meu trabalho escolar.

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