sábado, 31 de dezembro de 2016

PORTO ALEGRE 2054

Acordo com o canto dos passarinhos e com o afago silencioso e dourado do sol que, nesta época do ano, esgueira-se pelo vão entre os altos edifícios e chegam até minha janela. Ainda com os olhos fechados, distingo o chilrear do sabiá, do bem-te-vi e do joão-de-barro. A este último, eu chamava, na minha distante infância, de forneira, influenciado pelos parentes uruguaios, que identificavam as casinhas de barro desses pássaros como fornos (hornos, em espanhol), dando-lhes o nome de hornero.
   Abro os olhos e procuro saber que horas são. O celular, que agora chamamos de multiplex, mostra o horário: 8:25. Imediatamente me vêm à mente os anos 2015, 2016, quando esse aparelho já tinha várias funções, além de indicar o horário. Hoje, em 2054, o multiplex comanda tudo.
      Em 2016, eu imaginava que, se conseguisse chegar aos 100 anos, veria tudo mudado de forma incrível, como aconteceu na primeira década do século XXI. Constato que acertei em algumas previsões e enganei-me redondamente em outras.
     Agora, em 2054, o inglês tomou conta de quase todo o Planeta. A mania de utilizar termos ingleses no falar começou no final do século XX e se intensificou progressivamente ao ponto de hoje não existir uma só frase em pretenso Português que não tenha pelo menos uma palavra ou expressão estrangeira. Há casos em que, para entender algo escrito em Português, os autores de reportagens se valem do Inglês para explicar o sentido. Em 2040, um deputado federal protocolou um projeto de lei visando a obrigar os brasileiros a utilizarem somente o Português nos órgãos de comunicação do governo e nos jornais, proibindo o uso de idiomas estrangeiros, especialmente o Inglês. Mas o tema não passou na Comissão de Constituição e Justiça. Além de não contar com apoio popular, o próprio parlamentar, o Policarpo Quaresma do futuro, não conseguiu evitar termos em inglês na redação do seu projeto.
    Por falar em jornalismo, já não existem jornais em papel há muitos anos. Lá por 2015, já havia quatro pioneiros na migração para a Internet: Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, um diário do Ceará, e dois do Rio Grande do Sul, O Sul, de Porto Alegre, e O Alvoradense, de Alvorada. Uma grande parte dos jornais do país já publicavam suas notícias na Internet, além do papel, mas esses quatro já haviam abolido a plataforma antiga. O principal motivo foi diminuir os custos com a compra do papel. Atualmente, as notícias são apresentadas por meio do computador, na verdade, pelo multiplex, já que há muito já não há os antigos computadores de mesa. Além de comandar a Internet, o multiplex também projeta as imagens em painéis móveis onde antigamente eram projetados os dados dos chamados projetores ou mesmo nas paredes.
  As paredes das empresas ou mesmo das residências também viraram local para a projeção das imagens de televisão. A tevê física também não existe mais seguindo uma tendência já imaginada anos anos após a sua invenção. Os primeiros aparelhos eram caixas grandes, largas, com tela onde as imagens eram projetadas de dentro para fora por meio  dos raios catódicos. As tevês foram se tornando mais finas. No início, até um gato poderia dormir em cima delas. Depois, foi se afinando ao ponto de serem penduradas nas paredes, como um quadro. E então chegou ao ponto de desaparecerem fisicamente. Foi substituída pela projeção do multiplex. O som sai por uma pequena caixa móvel colocada em qualquer ponto da casa, até mesmo no banheiro, que se "liga" ao multiplex por meio do que se convencionou chamar de Wi Fi. Outra possibilidade são os fones de ouvido, também com Wi Fi, já que não há mais qualquer tipo de fio como o que era utilizado nos computadores de mesas com o chamado mouse. Já não existem mais fios de nenhuma forma. As velhas pandorgas foram substituídas por drones, os sinos das Igrejas começaram a ser acionados por equipamentos eletrônicos, já não há fios no altos das casas, a maioria já modificadas, e a energia não vem mais de termelétricas ou hidreléticas, substituída pela energia solar e eólica. 
 Saio de casa, lembrando-me do início do século XXI. Já não existem mais chaves. Tudo é aberto e fechado eletronicamente e comandado pelo multiplex, que liga e desliga torneiras da pia e do chuveiro, portas, portões (aliás os portões já eram ativados por controles em 2016. Quando eu tinha lá por 60 anos, imaginei que em 2054, os carros já estariam voando. Enganei-me. Ainda há rodas nos veículos, mas é claro que estão extremamente diferentes daqueles nos quais eu andava antes de 2018.

 Desde o início do século XX, tem aumentado muito o apego pelos chamados pets, como passaram a ser chamados os gatos e cães. Já há vários anos existem cachorródromos, grandes espaços cercados para as pessoas passearem com seus animais de estimação, evitando o perigo do trânsito e que emporcalhem as ruas. O amor pelos bichos tem sido demonstrado de forma cada vez mais intensa e explícita. Pessoas fazem festas de aniversário para os pets e até de casamento dos bichos. O comércio de pet shops com roupas, ornamentos e alimentos para cães e gatos tem crescido estrondosamente, assim como o ramo de cuidadores de pets, turismo específico e hotéis para animais. Já era alto o índice de animais por famílias e, a partir de 2040, o número já era de 2 pets por residência, em média no Rio Grande do Sul.
Estou indo visitar meu neto Raphael, o Meu Pequeno Chefe, que agora esta com 46 anos e mora na casa em que ele viveu quando pequeno, nas proximidades de onde foi o estádio Olímpico, do Grêmio. Outra curiosidade nas ruas é que, em alguns locais, há esteiras rolantes nas calçadas para beneficiar os mais idosos ou os deficientes. Os ônibus não contam mais com condutores. Tudo é comandado de forma eletrônica, mais ou menos como o metrô de antigamente.
 Enquanto caminho para pegar um ônibus, lembro praticamente também que não há mais espelhos, a não ser nos museus. Nos banheiros, há um sistema de câmeras tridimensionais com uma nitidez impressionante. O sistema de higienização também é totalmente diferente de tudo o que eu conheci quando jovem e já na entrada da velhice. Como não existe mais nenhum tipo de papel, a higiene é feita por equipamentos que utilizam jatos d'água ensaboada, sucção por ar e mecanismos controlados eletronicamente.  
  No meio do caminho, recebo uma menagem de Raphael. Ele me avisa sobre um chamado inesperado e urgente para São Paulo e me pede para adiar a visita. Promete, ao voltar da missão que a empresa o incumbira, de me pegar em casa e levar-me para relembrarmos os velhos tempos em que ele era criança.
    Retorno para casa e retomo a leitura dos meus livros clássicos para matar a saudade dos tempos antigos e do cheiro do papel. Depois do banho, vejo o noticiário na televisão, algumas coisas não mudaram, outras sim, principalmente no que se refere à violência.
 Anoitece. Os pássaros se calam, os ruídos vão sendo engolidos e o silêncio se faz absoluto. Custo a dormir, mas enfim o sono chega.

Acordo com o canto dos passarinhos e o afago silencioso e dourado do sol. Abro os olhos e procuro saber que horas são. No visor do celular, distingo: 8:30. Fixo mais o olhar e leio: 16 de setembro de 2016.





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